domingo, 29 de abril de 2007

A Pedra do Reino


Ouvir Ariano Suassuna na sua aula-show foi um presente especial. Pela primeira vez ele participou da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2005. Levei meu exemplar do Romance d’A Pedra do Reino para que autografasse. Ele o fez com o maior carinho.
Para mim ele é um livro vivo, livre de vaidades e cheio de vida para compartilhar. Sua fala foi alegre, o público atento conectou-se ao escritor que já foi dizendo que gosta de alegria, de fazer as pessoas rir. Ariano gosta de gente, em especial da sua gente. Quer viver e escrever. Ama os livros, o objeto livro, bom de pegar e ler.
Este ano sua obra mais famosa, O Auto da Compadecida completa meio século e ele completa 60 anos de vida literária que foi iniciada em 7 de outubro de 1945, com a publicação do poema Noturno. Ele nasceu na Paraíba em 16 de junho de 1927.
É o criador do Movimento Armorial, fundado em 1970 com o objetivo de cultivar as formas tradicionais da cultura popular nordestina.
Só desta aula já haveria muito para ser dito, mas escolho falar da questão da velhice com a qual o autor não cansa de brincar. É cobrado por ter 78 anos. Perguntam se tem medo da morte, até quando pretende escrever, se está sentindo-se idoso. Ele brinca, diz que não teme ser chamado de velho, velho é velho. O que odeia é a referência à terceira idade. Primeiro porque está errado, são cinco as idades: infância, adolescência, adulta, maturidade e velhice. Três são as idades da fruta: verde, madura e podre. Por isso é péssimo estar na terceira. É com bom humor que ele trata o tema. Um pouco de ironia talvez ou uma união dos opostos, como costuma fazer nas suas obras.
A velhice é uma etapa complicada na vida de muitas pessoas e não são apenas os recursos materiais que a tornam agradável. Envelhecer é realmente uma arte, e o tempero é a própria vida e o modo como ela foi construída.

MELANCOLIA

para não pensar que envelheço

imagens e lembranças

na memória eu teço

A magia das férias


Quando era criança, nunca tirei férias viajando com a família. Por quê? Não me lembro do meu pai sem trabalhar. Se estivesse em férias no oficial, logo arrumava um trabalho paralelo para compensar. Também não tínhamos carro, e faltava dinheiro e iniciativa para uma viagem de ônibus.
Viajei algumas vezes com meus tios.
Mas minhas férias escolares não eram ruins não. Minha mãe reservava um tempo a mais só para mim. Fazíamos biscoitos e bolos em formas pequenininhas. Ela fazia roupas novas para minhas bonecas, jogávamos cartas. Minhas amigas vinham brincar e os lanches eram especiais.
Agora que sou grande, trabalho e tenho marido e filho - adoro férias com a família.
Gosto de planejar antes, sem muita rigidez, só para aproveitar melhor. É uma das minhas dicas de viagem.
Também procuro apreciar as coisas típicas do local, isso faz com que eu leve para casa um pouco dos locais em que passei.
Acho bom levar uma dose de bom humor, não deixar que pequenos contratempos me atrapalhem.
Ser simpático é importante, ter respeito com as pessoas, como se estivesse visitando a casa de alguém, pois é isso mesmo que estou fazendo. As pessoas sentem-se donas do país em que nasceram da sua cidade. Não gostam de turistas mal-educados. Além do mais isso pode comprometer a imagem de todos os meus conterrâneos.
Não me esqueço da câmera fotográfica, com as devidas baterias e carregador, é bom lembrar.
Contudo, acredito que a magia das férias está na permissão.
Não ter horários, experimentar coisas novas, sair da rotina.
O número de dias não conta muito, se forem poucos, que sejam bem aproveitados.
Tudo isso para dizer que estou em férias e conto tudo na volta.


Minicontando: A magia das férias
Menino nunca entende adulto. Às vezes nem quer entender mesmo. Gabriel sempre acreditou ser assim, e pronto.
Mas certamente tinha alguma magia, alguma coisa estranha que acontecia com os seus pais nas férias. Pareciam outros. Nada de brigas ou exigências. Brincavam, corriam. A mãe dava gargalhada. Beijava toda hora.
Por isso quando a professora perguntou o que ele queria ser depois de grande, não teve dúvida:
- Pai em férias.

A força da mulher


Sempre que penso nas profissões que as mulheres podem exercer, avalio as limitações impostas pelo físico. Uma atividade em que não consigo enquadrar bem o trabalho da mulher é na Brigada Militar. Claro, não no serviço administrativo, mas atuando nas ruas. Sei que em muitos casos, no contado direto com a comunidade, pode ser muito importante a colaboração da ala feminina.
No policiamento de rua, especialmente na polícia montada, não conseguia imaginar.
Mulheres a cavalo! Talvez porque eu não me entenda bem com esses quadrúpedes. Eles têm uma personalidade muito forte. Percebem logo quando temos medo e já vão abusando.
Para quebrar mais um dos meus paradigmas, aconteceu um episódio simples. No trajeto quase diário que faço até um shoping perto da minha casa, tenho que vencer o assédio de vários meninos de rua que pedem no cruzamento. Eles se dividem entre os carros e as pessoas que atravessam a pé. Quando alguém se aproxima com sacolas de supermercado eles cercam imediatamente, tocando nos pacotes, tentando analisar seus conteúdos para serem mais precisos nos pedidos.
Próximo ao cruzamento sempre estão soldados da PM de carro, a cavalo ou em motocicletas. Eles acompanham discretamente a movimentação.
Neste dia, em especial, o grupo era composto por um casal de policiais, da PM montada. Quando parei do outro lado do cruzamento, com várias sacolas, senti medo. Os meninos, oito, eram bem maiores do que eu. O que não é difícil para meninos de 12 anos!
Olhei para a moça, que retribuiu o olhar, pois parecia atenda a tudo que acontecia, e dirigi o olhar para os meninos. Sem fazer sinais, nada, só olhei enquanto aguardava o sinal abrir.
Ela saiu cavalgando com toda a leveza, passou no meio dos carros e foi falar com os meninos que imediatamente sentaram em um banco do parque próximo a rua. Ela seguiu conversando com eles calmamente, eles não pareciam contrariados ou ameaçados.
Isso significa que, embora muitas atividades necessitem de força e autoridade, as mulheres são uma força especial, baseada na perspicácia, na sensibilidade.
As mulheres devem ser valorizadas profissionalmente da mesma forma que os homens. Não buscando igualdade, mas valorizando as diferenças, que fazem a verdadeira parceria.
Percebi na hora qual a verdadeira força da mulher.

A casa


Estou examinando as metáforas usadas por diversos autores. Tudo começou com a leitura de João Gilberto Noll. Ler o escritor já é uma metáfora, e ele usa muitas que eu gosto o que despertou meu interesse em analisar outros autores. O livro é Mínimos, Múltiplos, Comuns. São trezentos e trinta e oito romances mínimos. Também gosto muito de micro narrativas.
Metáfora, para quem não lembra, é o emprego de uma palavra em sentido figurado, caracterizada por uma relação de semelhança para estabelecer um novo significado. Assim podemos dizer que Luiza é uma flor, que ela fez uma doce aparição, que sua capacidade foi a chave do problema.
João Gilberto Noll escreveu, no conto Sarça Ardente: “Pois, por uma fresta uma vez entrei ali, e tudo lá dentro era um cheiro que produzia em mim, digamos, umas bolhas no raciocínio – idéias desidratadas no meio daquela umidade prenha.”
Costumo usar tropos, falo do chefe quando quero falar dos problemas difíceis de enfrentar, dos medos, da opressão. Deste modo, como muitos outros já fizeram, para mim a casa é o centro do mundo, o refúgio, o íntimo de cada um...
A casa em silêncio.
Todos dormem até que o sol pense em aparecer. A mãe acorda e o cheiro de café impregna o ambiente onde o sono teima em manter o filho na cama. O pai levanta e o ruído navega entre os lençóis, fronhas e travesseiros.
Logo todos comem as frutas e o pão, xícaras quase vazias. O jornal informa a previsão do tempo. Escovam, ouvem, olham. A casa vê no espelho da sala.
Saem, e o silêncio é quebrado pelo canto dos canários. A casa quieta. A tarde é lenta, e o sol entra por outra janela, vai longe, do quarto ao quarto.
As sombras anunciam a volta da família, quando a cozinha transforma a casa em aromas e sons. A água, os pratos, a mesa.
Os temperos que compõem o jantar.
As conversas animam a casa, com um pouco de todos e um espaço de cada um.
As roupas, as fotos na parede, os livros na estante, os brinquedos no tapete.
A família guarda na casa sua história e é a própria casa.
Por isso a casa é tão importante. Na música do Gilberto Gil, metáfora, que diz: “Uma lata existe para conter algo,/Mas quando o poeta diz lata/Pode estar querendo dizer o incontível”
Poderia ser casa em vez de lata. E ele diria:
- Por isso não se meta exigir do poeta /Que determine o conteúdo em sua CASA/Na CASA do poeta tudo-nada cabe.
Assim passei o domingo em casa, colhendo metáforas para uma semana habitual.

A arte de ensinar


Aprendi a ler antes de ir para escola, com minha mãe. Ela me ensinou a gostar dos livros e a querer aprender. Meu pai é um contador de histórias nato e também incentivou minha curiosidade.
A escola significava muito, mesmo antes que eu iniciasse a primeira série, e indicou uma oportunidade para que eu pudesse descobrir o mundo e brincar ao mesmo tempo.
Lembro com clareza do meu primeiro dia de aula, a professora contou a história da Rapunzel. Tenho ainda no meu primeiro caderno, o desenho da torre do castelo com as tranças descendo pela janela. Muitos professores foram igualmente importantes para mim. Tive um professor de história que lia poemas em francês, uma professora de português que pedia sempre uma redação que era lida na sala de aula. Com ela minha turma escreveu e editou o primeiro livro de poesias.
Sempre estudei na escola pública. Mas hoje é grande o número de alunos na escola particular. As coisas mudaram, o ensino é muito caro. Os pais trabalham fora, muitas famílias transferem à escola a responsabilidade total da educação dos seus filhos. Tratam os professores como seus empregados. Acho que isso tudo ainda vai ser repensado. Cada um entenderá seu verdadeiro papel.
No meu modelo de perfeição a escola é pública, de qualidade, gratuita e para todos. Os professores têm salários dignos e a meta é a busca do conhecimento. Os professores são parceiros. Especialistas na arte de ensinar.
Só uma coisa permanece igual desde que entrei a primeira vez na escola, a dedicação dos professores. Que nunca desistam!

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Cocoroca


As pessoas me contam, quase sem nenhum esforço. Acho até engraçado e me faço de difícil às vezes, finjo que não estou interessada, mas não adianta, elas insistem.

Nas férias então é pior, ou melhor.Um dia desses bati o recorde, percorri seiscentos metros até a fruteira, na ida uma pessoa que caminhava atrás de mim chamou:

- Oi moça! Com eu poderia deixar de atender a um elogio desses?

- Sim.

- Moras aqui no residencial?

E começamos uma conversa animada, nem a chuva nos calou ou aumentou nosso passo.Ela contou que trabalhava em um hotel, mas a mudança de turno a fez desistir. Agora é diarista, o que é mesmo muito divertido e interessante. Trabalha em casas alugadas por turistas, que são muito bacanas e descontraídos, segundo minha amiga, afinal nos tornamos confidentes. Contou que o serviço é moleza e que naquela tarde dormira boa parte do tempo na cama dos turistas. Nem ligou ou nem quis perceber que eu também sou uma turista. Melhor mesmo é conversar. Despedimo-nos e ela mostrou onde mora e disse seu nome – Solange.

Na volta conheci Karina, que trabalha no clube, tem intervalo de uma hora, mas hoje dormiu e acabou ficando duas horas em casa. Tem dezoito anos e nasceu aqui mesmo, perto da praia. Mas não era assim, com ruas e casas, só tinha mato. Agora é melhor,tem muitas pessoas para conversar e fazer amizade. Eu que o diga.

Tenho outra amiga que diz que está escrito, na minha cara – gosta de ouvir. Afirma que eu incentivo com um “mesmo?” ou “não acredito!”. Quem é que resiste a um desafio destes?

Temos uma teoria, pessoas assim, como nós, adoram comer, saborear, trocar receitas. Digerem, mastigam. E experimentam as comidas mais exóticas, e das comuns, mas com poucos adeptos. Fiz um teste com ela, fui perguntando uma centena de pratos, até rã, polvo, dobradinha, fígado, rim...Pasmem, as repostas foram cem por cento sim. Com direito a comentários sobre textura e sabor, o que não deixou dúvidas, ela provou.

No final acrescentou, só não como cocoroca.Cocoroca? O que é isso? – perguntei.

- Um peixe que dá nas pedras. Mas já experimentei.

Verdade ou não, algumas pessoas são sim, devoradoras de histórias. Até sobre cocoroca.

Para onde vão os objetos perdidos?




O mundo está dividido em dois grandes grupos de pessoas. As que perdem coisas e as que acham. Existem grandes perdedores e grandes descobridores. Para perder é muito fácil, basta que o dono se desconecte dele por um momento, um desapego, e o objeto cai em esquecimento momentâneo e torna-se perdido.


Como a maioria das pessoas perde muito mais do que acha, fica a pergunta – paraonde vão os objetos perdidos?


Para achar estes objetos é preciso certo treino e uma pitada de sorte. É importante estabelecer que a pessoa que acha, na maioria das vezes não é a que perdeu.


Ouvi certa vez o depoimento de um sujeito no ônibus, ele era um grande descobridor de guarda-chuvas perdidos. A técnica usada é muito simples, quase óbvia. Em dias de chuva quando o sol aparece sem aviso, os ditos objetos protetores são esquecidos, largados. Em ônibus, balcões, banheiros público, provadores de lojas, restaurantes e praças. É só ficar atento para encontrá-los. Ninguém gosta de carregar um guarda-chuva se ele não for útil no momento.


Este mesmo homem intitulou-se um iniciante em encontrar vales-transporte. Como utilizava transporte coletivo quase todos os dias, percebeu que as pessoas costumavam buscar na bolsa, os vales, ainda na parada, e com pressa acabavam derrubando algum antes de entrar no ônibus. É uma idéia coerente.


Assim fica fácil entender porque perdemos óculos quando o sol vai embora, canetas em sessões de autógrafos, cadernos em sala de aula, casacos quando esquenta, filhos em shopping center.


Na ânsia de encontrar nossos objetos perdidos podemos apelar aos santos. São Longuinho é especialista nesta tarefa. Exigindo para pagamento apenas três pulinhos. A regra é dizer ao São Longuinho, que se a coisa perdida for achada,você, que perdeu, dará três pulinhos.


Quando não são encontrados pelos incríveis descobridores, os objetos vão para um lugar mágico, onde milhares de objetos solitários esperam inconformados pelos verdadeiros donos. São catalogados e colocados aos pares em pequenas prateleiras. Existem seres especiais, quase místicos que são responsáveis pela guarda das salas e para receber os possíveis donos, caso algum deles apareça. O ambiente é sombrio e o cheiro é quase mofento.


Afirmo com convicção, pois já fui abduzida por um amigo até uma destas salas para procurar uma mala perdida.


Onde fica?Ali mesmo, no prédio dos Correios.

Oficinas e pessoas


Gosto de oficinas literárias. Na Feira do Livro de Porto Alegre ocorrem várias.Todas gratuitas e com especialistas nos diversos temas. Em 2006 scolhi três para participar - contos, crônicas e minicontos. Participaria de outras mas eu não tinha mais horário disponível e considerei também um abuso da minha parte, pois as vagas eram limitadas e muitas pessoas não tiveram a oportunidade de participar de nenhuma.

As oficinas foram breves, três encontros de duas horas. Além do contato com o escritor, os participantes tiveram a chance de ver seus escritos examinados e discutidos por um grupo interessado no tema. Conversar, fazer amizades, e confirmar a idéia de como as pessoas são diferentes, pensam de maneira diversa e como gostam de afeto.

Mesmo tendo seus textos já publicados e comentados por muitos, sempre querem a aprovação, o carinho de mais outros leitores.

No dicionário consta como uma das definições para oficina - um lugar onde se realizam grandes transformações. É perfeita. Ninguém sai com a mesma idéia que chegou no primeiro encontro. Leva junto uma lista de livros, um tema para fazer, erros que precisa corrigir, algum mico que pagou na frente de todos. O desejo de escrever melhor ou a vontade de parar no dia seguinte. Um turbilhão de idéias que irá se acomodando com o passar dos dias ou quem sabe até a próxima oficina.

Claro, nem todo bom escritor é também um bom professor, ou oficineiro. Além da técnica tem o carisma, a aptidão para transferir conhecimentos. Algumas oficinas são um verdadeiro show. Outras não. Nem sempre é possível agradar a todos.

O meu dilema foi o seguinte, nas apresentações me intitulei escritora. O que causou inquietação. Muitas pessoas atribuem o título de escritor a quem ganha a vida com seus escritos e já tem livros publicados. Em minha defesa, digo que sou agarrada as definições, aos conceitos. Escritor é o autor de composições literárias. Ainda mais, acho que é a aquele quem tem uma produção contínua e de alguma forma expõem o que escreve para apreciação de outras pessoas. Que não sejam da sua família e de seu círculo de amigos, é claro.

Muitos têm blogs, escrevem em jornais de pequena circulação, publicam em revistas e sites especializados. São inéditos em publicações individuais, em papel.Não é uma disputa com os já consagrados e apreciados pela crítica. Tem lugar para todos e não desgasta a dita profissão. O ofício de quem se confirmou escritor.

Como conceitos sempre podem ser reformulados, quem sabe um dia darei a mão a palmatória. Até lá vocês conviverão com meu exibicionismo.


VERDADES

inteiras, internas,

agradam nuas

e não somente tuas

Uma voz interior




Loucura ou não, não sei dizer, mas tudo começou com minha avó. Quando eu tinha uns seis anos, ouvi-a aconselhando uma amiga. Dizia que era preciso meditar, ficar em silêncio, para ouvir certa voz interior, que vinha do coração. Muitas outras vezes eu vi, ela falava sozinha em voz baixa, sorria até. Balançava a cabeça afirmativamente, concordava.


Adorava vê-la assim.Tanto, que descobri ou criei, um amigo imaginário que também falava comigo. Íamos juntos para o colégio, brincávamos, e ele até fazia os temas comigo.


Ele ou ela, podia ser o que eu quisesse. Era menino quando nós subíamos na goiabeira e menina quando vestíamos as bonecas.


Não sei bem quando meu amigo foi morar em outro lugar, ficou distante. Também não sei precisar o exato momento em que ele voltou a falar comigo. Hoje sei que ele amadureceu muito, me dá conselhos precisos e na hora certa. Nem sempre são palavras, mas são respostas que surgem na forma de um livro, de uma pessoa, um acontecimento cotidiano.


Alter ego ou consciência, espiritualidade, anjo da guarda? Piração?Sei lá. Estando sob controle é a conta. E tenho confiança que isso não é privilégio meu. Sei que para outros, isso foge completamente ao controle. O limite entre a sanidade e a loucura pode tornar-se sutil.


Participei de uma oficina de crítica do conto, na CCMQ, com Flávio Ilha. O primeiro conto analisado foi William Wilson do Edgar Allan Poe. O conto é a história de um homem que se sente perseguido por um sujeito de mesmo nome que tenta roubar-lhe a identidade e a vida.


O fim é trágico.


O autor denuncia-se, dá pistas de que o conflito é o dele mesmo. Uma luta interna da perversidade com a vontade agir corretamente que segundo ele, estaria em todo ser humano.


Os deslizes do narrador são os do escritor, alcoolismo, vício pelo jogo. No conto, a obsessão em derrotar o duplo chega ao extremo e na ânsia de acabar com o tormento o suicido é a única alternativa.Porém, matando o homônimo, William Wilson acaba com a própria vida.


Mas estou tranqüila, minha voz interior não esconde nenhuma perversidade, nem compete comigo em nada. É mais aquela voz que tantas pessoas confessam abertamente. Uma voz sábia, visceral. Uma intuição.


Se você também ouve essa voz, não tenha medo, analise, escute, quem sabe não vem daí uma boa dica....




O som de alguém que batia levemente a meus umbrais."Uma visita", eu me disse, “está batendo a meus umbrais”.É só isto, e nada mais. ...(Versos do poema O Corvo de Edgar Allan Poe, tradução de Fernando Pessoa)

Assuntos complicados


Realmente, determinados assuntos azucrinam a vida. Eles passam como um filme, na imagem de fundo, nem são o foco principal, e de alguma maneira são fisgados pela minha mente. Daí não consigo parar de pensar neles. Pergunto a opinião das pessoas, pesquiso, tenho que escrever alguma coisa a respeito para que eles me libertem.

Nem sempre são assuntos polêmicos ou importantes, apenas martelam. Basta que a mente fique livre para que eles tomem conta. Só param de se intrometer se lhes dou atenção. O problema é que às vezes não rendem muito, preciso associá-los a outros para que tenham algum significado importante.

E o pior de tudo é a vingança que eles cometem, sempre me causam algum tipo de contrariedade.

É alguém que fica ofendido porque acha que aquilo foi com ele, outro que acha que eu não posso pensar daquela maneira, porque não combina com meu modo de ser. E olha que nem tenho tantos leitores assim. Ou tenho?Já expliquei que é só uma crônica, um pensamento vadio, uma opinião danada que no outro dia muda logo cedo. Bom, aí passo a ser considerada volúvel, quase maquiavélica, alguém em quem não se pode confiar.

Poxa! Mas se não falo a verdade sobre ter uma certeza momentânea, também serei acusada.

Quando escrevi sobre a cor das unhas, avisei que era um exercício, mesmo assim quiseram saber se eu era contra quem pintava as unhas de vermelho, se achava muito sexy, se pintava as unhas só eventualmente mesmo. Falei a verdade, era tudo invenção, só para escrever a crônica. Com uns toques de verdade é certo, pois ninguém consegue fugir dos seus princípios. Aí sim a pessoa não gostou. Como ela poderia fazer uma imagem a meu respeito se eu escrevo qualquer coisa sobre qualquer coisa?Justifiquei novamente, não quero perder nenhum leitor. O barato de escrever é este, viajar nos personagens, misturar realidade com fantasia. Que não sou o que escrevo, mas que estou em tudo que faço. Fico imaginando a vida dos cronistas famosos, sempre deve haver alguém cobrando uma opinião, um posicionamento. Lembrei da Martha Medeiros, em um evento que assisti na Feira do Livro. As professoras questionavam uma crônica em que ela comparou Torres a Punta del Este. Muitas pessoas em Torres ficaram ofendidas achando que ela menosprezava a praia do litoral gaúcho. Martha explicou que não, que apenas quis chamar a atenção para alguns problemas daqui, onde a beleza natural é muito maior do que outros lugares. Só esta crônica rendeu bons minutos de explicação. Fora os e-mails que ela confessou que já respondera.

Deixando de lado as comparações, quem me dera um dia eu possa, os assuntos é que resolvem complicar. Assim do nada.E não é só para quem escreve crônica, pense aí, quantas vezes em uma reunião de amigos, sua língua não foi mais rápida do que sua mente e você lançou aquele assunto inocente que lhe rendeu a maior complicação ?

Sr. Daruma


Minha história favorita sempre foi a do Aladim e sua lâmpada maravilhosa. O Aladim era um menino pobre, um menino bom que queria possuir tudo. A princesa era linda e os dois apaixonaram-se. E aparece a lâmpada maravilhosa, com um gênio para conceder desejos. O máximo que alguém podia querer.

Eu sonhava com as lâmpadas que ainda podiam estar perdidas pelo mundo e pensava em quais seriam os meus três pedidos. Não podia desejar nada para o mundo inteiro, nem a morte de ninguém, o que eu jamais desejaria mesmo.

Mas quais seriam meus três únicos desejos.

A vida me mostrou que muitos desejos se realizam pelo nosso próprio esforço. Basta focar nossas forças e trabalho e eles acabam acontecendo. Outros acontecem de maneira inusitada, até assustam. Desejos mais fáceis e possíveis, mas que sozinhos não conseguiríamos realizar. O que já me fez pensar muito bem antesde desejar, pois sei que meus desejos se realizam. Não só os meus, é claro. Acredito que é algo vinculado a fé que temos em nós mesmos, na vida. Em um poder superior, chame lá do que quiser.

Na semana passada ganhei um Daruma. É um bonequinho japonês, em forma de ovo, todo vermelho, com uma carinha pintada na frente. Ele é feito de “papier machê” e veste-se de vermelho para espantar o olho grande. Tem fundo mais pesado para manter-se sempre sem cair, o que significa não desistir. O Daruma é um símbolo da paciência e perseverança, realização de sonhos e sucesso nas atividades profissionais. Os olhos não estão pintados e devemos pintar um deles ao fazer um desejo e o outro quando este desejo se realizar.

O Daruma foi um monge budista que queria saber qual a verdade da vida. Ele permaneceu nove anos meditando frente a uma parede do Templo Shorin até atingir o tão desejado estado de iluminação. Assim, sua imagem ficou relacionada à esperançae a realização de sonhos.

Passei dias pensado no meu desejo e finalmente pintei um dos olhos do meu bonequinho.Incrível como é difícil desejar quando finalmente temos nossa lâmpada nas mãos. Querem saber se funciona? Quando pintar o outro olho eu conto.

Questão de concordância


Tenho um amigo que de vez em quando é meu chefe. É difícil separar os dois personagens, pois não posso dizer para um o que diria facilmente para outro.

O problema é o seguinte, respeito a hierarquia, mas não consigo aceitar como ela é utilizada, na maioria das vezes. Eu prefiro caminhos diretos e objetivos.

Isso vem da infância, eu obedecia meus pais, mas em determinados momentos eles me irritavam, mesmo estando absolutamente certos e precisos. Eu não admitia que determinassem meus atos. Principalmente quando não diziam isso de maneira transparente.

Tenho problemas para aceitar que me digam o que fazer, mais ainda em horas em que eu quero fazer outra coisa. É um capricho, uma mania ou rebeldia.

Bom, isso fica claro, pois não consigo esconder quase nada do que penso e sinto, nem quero mesmo, prefiro ser assim, previsível.

Então, meu amigo, no momento chefe, usando a delicadeza de amigo e a responsabilidade de chefe, precisa me passar uma tarefa.

Ele diz:

- Vamos executar o seguinte trabalho.

Eu respondo:

- Fique a vontade para fazer você mesmo - só de birra.

Nem precisa dizer que ele usa a primeira pessoa do plural, nós, quando gostaria de usarmesmo a segunda pessoa do singular, tu.

Mas depois acabo executando a tarefa. Ele faz isso sempre, mesmo em questões que não se referem ao trabalho.É uma questão de concordância verbal, que ele encara como solidariedade. Usa nós só como apoio a causa, o que não resolve nada, pois apoiar não é executar nem o todo nema parte. Ou a parte dele será uma final, depois da minha parte inicial feita com data e hora marcada.

Como no final tudo se encaixa, os personagens são os amigos, acho melhor explicar que isso é só uma crônica e “nós” não devemos levar nada disso a sério.

Comendo confetes


Meu melhor carnaval foi aos nove anos com fantasia e tudo, no baile infantil do maior Clube da Cidade. Foi o melhor porque foi quando eu descobri o que era carnaval. Uma imagem que foi mudando com o tempo mas que ficou gravada como um sabor de infância. Nem sei como minha mãe deixou, acho que foi a vizinha que levou toda a criançada do bairro.

Lembro que disseram que eu iria e logo perguntei o que afinal teria que fazer lá.

- Pular e dançar – responderam.

Aí mesmo que não entendi nada, pois nunca tinha sido permitido pular assim fora de casa. Para minha maior perplexidade ganhei dinheiro para refrigerante, confete e serpentina. Confete e serpentina? Achei melhor não perguntar.

No salão recebi liberdade total, coisa desconhecida até então. No fim do baile nos encontraríamos do lado esquerdo da bilheteria.Adorei tudo. As fantasias, as músicas, o confete e as serpentinas. Pular muito,encontrar amigas do colégio.

Quase no fim do baile, uma guria de outra turma veio sorrindo e disse:

- Abre a boca e feche os olhos.

Atendi prontamente, acreditando ser mais uma surpresa carnavalesca. Não era, ou era de mau gosto. Ela encheu minha boca de confete e saiu rindo com as amigas. Coisa horrível.

Aprendi que no Carnaval também tem dessas coisas.

Marcou tanto, que mesmo depois de adulta eu lembro como um alerta para não confiar demais. Passei a controlar minha diversão com inteligência. Isso incluiu a bebida e as companhias. Acho que o gostinho do confete na garganta foi mais forte do que a liberdade conquistada tão rapidamente.

Continuo gostando de Carnaval, adorando as músicas, fantasias, desfiles.

Só não estou comendo mais confetes.

Personagens


Essa é a história de um amigo de um amigo meu que queria muito ser escritor. Desses famosos, que vivem de literatura. O sujeito escrevia muito e lia muito também. Ficava aporrinhando todo mundo para ler seus textos. Levava nas reuniões de amigos e da família, no bar, até no velório do tio ele levou. Pedia opinião, uma crítica, um comentário. Todos liam e diziam que eram bons.


Ele ficava satisfeito na hora, mas logo batia uma insatisfação que só melhorava se ele escrevesse mais. A mãe era a única que guardava as cópias, que já enchiam a gaveta do meio da cômoda. Cômoda antiga, gavetas grandes.


Um amigo dele sugeriu que comprasse um computador. Poderia escrever mais rápido, gravar tudo, usar a internet e passar para outras pessoas. Fazer amigos e mandar seus escritos pelo mundo. E ele fez exatamente assim e mais. Participou de concursos,foi premiado, arrumou trabalho como colunista de uma revista importante.


Então os editores começaram a ditar regras e ele escrevia sob encomenda.

A insatisfação voltou com força e ele criou um personagem, alguém livre para escrever.


Podia mostrar os textos dele na família, como se fossem de um grande amigo. Todos queriam conhecer o tal amigo que escrevia tão bem. Tanto que ele precisou criar um rosto para o personagem, um estilo uma personalidade, uma história. Falava muito nele com a esposa, que adorava as histórias do tal amigo. Ela adorava o modo como ele se vestia, os versos que ele declamava, as viagens que ele tinha feito. Passava horas ouvindo o marido contar. E o personagem foi ficando forte, ocupando todos os espaços, ocupando seu lugar na revista, comprando roupas diferentes, trocando de carro, sorrindo e desfilando nu pela casa.


Os parentes resolveram dar um basta e procuraram a esposa para interná-lo a força. A surpresa foi imensa. Ela disse que jamais faria isso, pois ele era muito mais romântico, beijava muito melhor. Era um amante extraordinário. O outro, o escritor aquele, que ficasse bem longe.


Verdade ou não, mantenho meus personagens bem distantes!

Respostas


Sempre procuro respostas. Mal uma pergunta começa a ser formulada e já estou pensando em uma maneira para respondê-la. Um modo, uma solução. É comum pensar que sempre tem um jeito.


E a vida me diz que para a velhice e a doença na velhice, não existe solução. Encontrar um meio de lidar com isso não é fácil. Eu quero acreditar que é bom envelhecer com saúde, é, eu sei. Mas não é para sempre.


De repente aquele sujeito alegre, cheio de histórias, quase com oitenta e cinco anos, vira bebê. Não come com sua própria mão, não consegue ir ao banheiro, nem sequer sente que quer ir ao banheiro. Estranho é que ele diz sim a todas as minhas perguntas e sorri sempre. Mais estranho é, que se eu pudesse simplesmente apertar em um botão, e desligá-lo de tudo que ele está passando, eu faria. Chega, uma vida é legal enquanto a gente pode mandar nela. Depois é humilhação, sofrimento.

Talvez este sofrimento sirva para resgatar algo que temos que viver nessa vida, para amansar o egoísmo, unir a família. Mostrar que dinheiro não adianta, só dá alguma dignidade. E nem é tanto, nem suficiente. O plano de saúde que toma a metade do meu salário, proporciona certo conforto, menos ao meu coração. Tenho privilégios que outros não têm. Passo a frente deles nas filas e isso não muda nada. Não responde nada. Ao contrário, mostra diferenças que eu me envergonho de ter. Como devo agir, como será daqui para frente, quanto tempo vou viver esta situação?Não sei a resposta.


Dá vontade fazer da vida um programa na televisão e ficar sentado, com o controle remoto na mão. Se estiver chato, troco de canal. Dia de comédia - aproveito. Dia de votação, elimino o problema. Mas não vai funcionar por muito tempo. Quem sabe a resposta não é encarar da melhor forma possível, agir com o coração, com aquela velha intuição e superar.


Escrever sobre a doença do meu pai, sua passagem pelo hospital e espero que seuretorno para casa, em melhor estado, é um desabafo, pois não consigo pensar em outra coisa. Também é uma maneira de dizer para outras pessoas que tem alguém que sofre como elas, que temos os mesmos problemas. Que buscamos respostas.


Essa reflexão lembrou-me a última frase de uma resenha de Celso Gutfreind, sorbre o livro da Cíntia Moscovich – Por que Sou Gorda, Mamãe?."Por que Sou Gorda Mamãe? Sugere ainda, com simplicidade, brabeza e doçura, que a vida pode ser interessante nela mesma, na morte revisitada ou, juntando tudo, na literatura." Acho que é uma resposta. Na alegria ou na tristeza, a vida acaba valendo a pena, e quem sabe vira até livro.